Para negociadores dos dois lados, a frequente oposição explícita francesa é um sinal de que dificilmente o acordo entre UE e Mercosul avançará antes das eleições de 2022 na França
O governo francês não vai aprovar o acordo de associação entre a União Europeia e o Mercosul se ele não incluir garantias de que o aumento do comércio não trará aumento do desmatamento, disse nesta sexta (29) o ministro do Comércio francês, Franck Riester.
A declaração foi feita na mesma semana em que o presidente da comissão de ambiente do Parlamento Europeu, o também francês Pascal Canfin, rejeitou o acordo: "O Parlamento não tem nenhuma intenção de passar um cheque em branco ao Brasil sobre a Amazônia".
"É inconcebível que o aumento do comércio incremente também a importação de desmatamento. É preciso haver garantias na lei para combater o desmatamento importado. Esse é o problema que temos com o Mercosul, e estamos tentando achar uma solução que assegure que o aumento do comércio com o Mercosul não vai elevar a importação de desmatamento", disse Riester em debate sobre como tornar o comércio mais sustentável, no Fórum Econômico Mundial.
Para negociadores dos dois lados, a frequente oposição explícita francesa é um sinal de que dificilmente o acordo entre UE e Mercosul avançará antes das eleições de 2022 na França. Sob pressão do crescimento do Partido Verde, o governo do presidente Emmanuel Macron tem priorizado questões ambientais nas políticas internas e na comunicação.
O acordo entre os dois blocos está travado desde 2019, quando as negociações foram concluídas, 20 anos depois de iniciadas. Desde então, os textos do acordo se mantiveram em fase de "revisão legal", onde detalhes são esclarecidos e acertados. Depois disso, o acordo será traduzido para todas as línguas da UE e do Mercosul e submetido à avaliação do Parlamento Europeu e do Conselho (que reúne os líderes dos 27 membros).
Uma ratificação definitiva só virá depois que todos os Parlamentos nacionais e regionais aprovarem o acordo, mas a autorização pelo Parlamento e pelo Conselho já permitiria o funcionamento provisório do acordo comercial. A demora nos trabalhos técnicos, porém, reflete a dificuldade política que o acordo vem sofrendo na Europa, principalmente por causa do aumento do desmatamento sob a presidência de Jair Bolsonaro.
Riester deixou claro que a França considera os acordos comerciais como instrumentos de pressão para que os parceiros adotem práticas de desenvolvimento sustentável. "Acordos de comércio são boas ferramentas, que queremos usar cada vez mais, para que o respeito ao Acordo de Paris seja essencial e os padrões de desenvolvimento sustentável sejam respeitados", disse ele.
O governo francês tem defendido que os compromissos assinados pela União Europeia explicitem sanções contra parceiros que desrespeitarem suas cláusulas de sustentabilidade. Rieter citou como exemplo a discussão recente com a Coreia do Sul, que, na avaliação da UE, não está cumprindo cláusulas de proteção aos trabalhadores.
Segundo o ministro, a França quer manter a economia aberta, mas mantendo "coerência com nossa pauta de desenvolvimento sustentável". "Do ponto de vista político, o tipo de comércio que apoiamos precisa reduzir em vez de elevar as importações de locais que não respeitam as mesmas regras", disse ele.
Riester também defendeu que as questões de sustentabilidade sejam incluídas nas regras de comércio multilateral da OMC (Organização Mundial do Comércio). "Temos que ter a ambição de criar novos padrões que permitam impulsionar globalmente nossos objetivos sustentáveis, em vez de incentivar o oposto", afirmou o ministro.
As declarações de Rieter ecoam crítica recente ao desmatamento no Brasil feita por Macron e reforçam a oposição ao acordo no Parlamento Europeu. Canfin citou nominalmente o presidente Bolsonaro em entrevista ao jornal português Público.
"O acordo não prevê nenhum mecanismo concreto de regresso à situação anterior, por exemplo, nos casos da soja ou da carne, se o presidente Jair Bolsonaro desrespeitar os seus compromissos de luta contra a desflorestação.
O governo do Brasil claramente não tenciona cumprir os seus compromissos na cena internacional, mas no acordo do Mercosul não temos nenhum mecanismo concreto que permita travar os novos fluxos financeiros e comerciais associados ao acordo, ou seja, parar com as exportações para o Brasil e as importações para a UE", afirmou ele.
Assim como o ministro do Comércio francês, o eurodeputado considera indispensável que o texto inclua um "mecanismo granular e detalhado" que permita repor tarifas ou suprimir cotas se houver desrespeito dos compromissos ambientais pelos parceiros comerciais. Ele diz que é preciso ir além da atual estratégia da Comissão Europeia, que estuda apresentar um "instrumento comum interpretativo", em que os dois lados reafirmam compromissos com pontos mais sensíveis politicamente.
Para Canfin, porém, a medida não será suficiente: "Tenho a certeza que uma declaração interpretativa e cosmética não chega". Segundo ele, as restrições ao acordo com o Mercosul são seriam resolvidas com uma declaração que seja juridicamente vinculativa e tenha o mesmo estatuto que o acordo. "O que posso garantir é que uma simples declaração sem valor jurídico não será suficiente para o Parlamento ratificar o acordo", disse ele ao Publico.
ENTENDA O CASO
O que é o acordo UE-Mercosul?
Um documento que tem um capítulo de livre-comércio entre os blocos e um capítulo político, que inclui áreas como direitos humanos, colaboração científica e imigração
Em que pé está?
As negociações começaram em 1999 e foram concluídas em 2019. No momento, o texto está sob revisão jurídica, na qual se acertam trechos pontuais que possam estar em contradição.
O que falta fazer?
Após a revisão jurídica, o texto tem que ser traduzido nas 23 línguas oficiais dos dois blocos, e então segue para ratificação
Quem ratifica?
No Mercosul, o acordo tem que ser aprovado pelos Parlamentos dos quatro membros (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai). Na União Europeia, precisa ser aprovado no mínimo pelo Conselho e pelo Parlamento europeus, mas a tramitação final depende de ele ser ou não fatiado em um acordo comercial e um político.
Qual a vantagem de fatiar o acordo?
O acordo comercial é de responsabilidade apenas da UE, e não precisa ser aprovado por Parlamentos nacionais e regionais, onde enfrenta as maiores restrições. Também não precisa de unanimidade na votação do Conselho da UE: basta obter 55% dos países (atualmente, no mínimo 15), representando 65% da população do bloco
A estratégia de fatiamento, porém, que chegou a ser estudada pela Comissão Europeia para viabilizar a tramitação do acordo, perdeu força internamente pelo potencial de provocar reações contrárias nos membros da UE.
Quando o acordo deve ser votado?
Não há prazo, mas negociadores dos dois lados dizem ser mais provável que fique para o segundo semestre de 2021 ou, mais provavelmente, para depois das eleições francesas, em 2022